quarta-feira, 8 de abril de 2015

A Negritude em “Deixa passar o meu povo” de Noémia de Sousa

A Negritude nasceu de um protesto intelectual de negros de formação cultural europeia que tomavam consciência da diferença e da inferiorização que os europeus impunham aos descendentes da África. Foi Aimé Césaire que, no seu Cahier d'un retour au pays natal, em 1939, empregou o termo “negritude” pela primeira vez.
No entanto, as discussões em torno da negritude em termos do seu foco como movimento e seus aspectos ideológicos perante o negro e sua relação com o branco causaram diversas reflexões, por vezes contraditórias: o tom exaltado que as discussões sobre a Negritude atinge é produto da indissolubilidade dos aspectos políticos, culturais e ideológicos de que ela é fato e factor”. GOMES (2011)
Alguns teóricos da negritude como Aimé Césaire, Léon Gontran Damas e Léopold Sédar Senghor, manifestavam o desejo de revitalizar no plano teórico e conceitual a herança cultural africana fundada na valorização da pureza racial ou étnica, motivo maior da crítica ferrenha de Stanislas Adotevi.
Nesta perspectiva supracitada assenta a maior crítica feita à negritude pelo facto de se ter tornado objecto da sua própria crítica. Ao criticar o racismo e sobrevalorizando o negro em relação ao branco mostra-se, também, racista pelo tipo de discurso que propala por defender um certo purismo negro e que incorre a um certo etnocentrismo que foi a razão da divergência de alguns defensores deste movimento.
Propondo uma solução conciliadora, Kabengele Munanga apud GOMES (2011) afirma:
Na história da humanidade, os negros são os últimos a serem escravizados e colonizados. E todos, no continente como na diáspora, são vítimas do racismo branco. Ao nível emocional, essa situação comum é um factor de unidade. (...) Portanto, cada grupo de negros deve adaptar-se e reajustar o conteúdo de sua NEGRITUDE, respeitando sua especificidade social, económica, política e racial. (1988, p. 57).
Independentemente dos conflitos em termos de alinhamento ideológico entre os mentores da negritude, pode-se destacar que do ponto de vista literário e ideológico a Negritude constituiu-se como o processo de busca de identidade, de conduta de defesa do património e do humanismo dos povos negros. Assim, este movimento recusou a assimilação de modelos externos à história negra _ africana pois pretendia a criação de um estilo próprio, no desejo de se demarcar dos modelos e motivos históricos das literaturas ocidentais.
A poesia da Negritude distingue-se da restante literatura africana de língua portuguesa pelo obsessivo tratamento da raça e da cor negras, qualificando-as com valores reais e simbólicos, reagindo, desse modo, ao racismo branco.
O discurso da Negritude constitui, portanto, a emergência estética da ampla doutrina da africanidade e da ideologia pan-africanista, contributo inestimável para o fazer literário segundo uma concepção autonomista que, embora aceitando naturalmente os contributos culturais variados (políticos, ideológicos, científicos, étnicos, populares, eruditos, etc.), incluindo os europeus, se atém a princípios autonomistas, africanos, anti-colonialistas, recusando a submissão aos padrões impostos pelas potências dominantes. LARANJEIRA (2001: 53).
Nota-se no entanto que esta valorização do que se entende por eminentemente negro existe o repúdio ao que se considera propriedade e herança do branco como forma de traçar linhas divisórias entre as duas realidades.

A Negritude em “Deixa passar o meu povo”
Em “Deixa passar o meu povo” é explícita a presença da ideologia negritudinista. O texto está recheado de referências também explícitas a elementos que denotam a apologia que o texto faz à negritude, não puramente num sentido estritamente nacional, e sim, numa perspectiva transnacional que é denunciada a partir do título “Deixa passar o meu povo” que é uma imitação de “Let my people go” de Lous Armstrong do grupo musical negro-americano “Hot Five” cujo teor é relativo a uma exigência no sentido de libertação de um povo em terras Egípcias “go down Moises, way down the Egipt land, to tell all the felous, to let my people go”, o que na mesma acepção em “deixa passar o meu povo” nota-se esta exigência pela libertação do povo negro.
Tendo em conta que a negritude na literatura se manifesta sobretudo pelo repúdio ao que se considera herança do colonizador, em “deixa passar o meu povo” este aspecto também é notável, tal como podemos observar nos seguintes versos:

“E enquanto me vierem do Harlem 
vozes de lamentação 
e meus vultos familiares me visitarem 
em longas noites de insônia,
não poderei deixar-me embalar pela música fútil 
das valsas de Strauss. 
Escreverei, escreverei, 
com Robeson e Marian gritando comigo: 
Let my people go,

Observa-se aqui o repúdio explicitamente expresso em relação à “valsa” que é tida como música fútil e herança do colono, em detrimento do blues/jazz que são estilos musicais cultivados pelos artistas Paul Robeson e Marian Anderson que a partir de Harlem, nos anos 30, empreenderam uma intensa produção artística conhecida como Black Reinaissance. Percebe-se, portanto, que além de um produto cultural com que (possivelmente) convivera por largo tempo devido à imposição do colono, o sujeito poético dá primazia às “vozes” com quem tem as mesmas inquietações e que partilha do mesmo sonho: let my people go.
A referência reiterada a Robeson e Marian faz jus à consciência transnacional do sentimento de ser negro a que nos referimos e que é expressa em:

“abro o rádio e deixo-me embalar...
Mas as vozes da América remexem-me a alma e os nervos.
E Robeson e Maria cantam para mim
spirituals negros do Harlem.
Dentro de mim soam-me Anderson e Paul
e não são doces vozes de embalo.
Let my people go”

Esta relação entre o sujeito poético e estes cantores com quem lida através do rádio é manifesta não por puro embalamento sinfónico e sim por um estímulo para, também, empreender uma “revolução ideológica” através da escrita. Ao invés de se deixar embalar pela música tal como era de se esperar, o sujeito poético tem a sua alma e os nervos remexidos porque são músicas de negros, sobre os negros para o mundo.
Neste discurso apologista da negritude podemos observar uma característica bem mais amadurecida em termos ideológicos e que, notavelmente, contrasta com os discursos poéticos antes proferidos, quando o sujeito poético afirma o seguinte:

“E já não sou mais que instrumento
do meu sangue em turbilhão
com Marian me ajudando
com sua voz profunda -- minha Irmã”

Observa-se que o valor desta negritude suplanta o sentido de mera bravura física (que fora excessivamente propalada inclusive por alguns “militantes” da negritude como forma de se impor perante o branco) e perpassa questões de ordem subjectiva que inauguram uma nova forma de se assumir como negros, postura para a qual os músicos do Black Reinaissance contribuíram deveras, daí a referência, mais uma vez, a Marian.
E, por esta postura ser de caracter transnacional e sendo pertença de todas as pessoas inseridas no sonho de ver o negro em condições melhores, nota-se a alusão que o sujeito poético faz em relação às pessoas que o acompanham nesta “luta” de fazer com que o seu povo passe:

“Escrevo...
Na minha mesa, vultos familiares se vêm debruçar.
Minha Mãe de mãos rudes e rosto cansado 
e revoltas, dores, humilhações, 
tatuando de negro o virgem papel branco. 
E Paulo, que não conheço 
mas é do mesmo sangue e da mesma seiva amada de Moçambique, 
Todos se vêm debruçar sobre o meu ombro,
enquanto escrevo, noite adiante,
com Marian e Robeson vigiando pelo olho luminoso do rádio 
-- let my people go,

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