sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Releitura da fábula “a cigarra e a formiga”

Como é sabido, tal como a escrita, a narrativa da oralidade não é um sistema fechado de signos. Assim, poder compreender o sentido de uma escolha que o contador efectua é ser capaz de visualizar as hipóteses de permuta em cada contexto.
E, esta leitura contextualizada é deveras importante sobretudo quando se trata de literatura oral no seu todo, devido ao facto de esta servir de reservatório dos valores culturais dos povos. É esta a razão que nos faz concordar com a ideia de que a versão da fábula “a cigarra e a formiga”, patente no livro do aluno da 5ª classe do SNE, do ponto de vista ideológico “não pode encontrar acolhimento no universo cultural e antropológico” no seio de comunidades tipicamente moçambicanas, em particular, e africanas, em geral. (ROSARIO: 2004, p. 2)
Senão vejamos: na referida fábula, a formiga simboliza o sacrifício, o trabalho, a sensatez que é aplaudida por desdobrar-se durante o verão para que se possa prevenir dos maus tempos trazidos pelo inverno. Por outro lado, nos é trazida a cigarra que simboliza o deleite, a preguiça e a insensatez que tendo se divertido (cantado) durante o verão enquanto a formiga trabalhava, sofre durante o inverno e vive pedindo ajuda que lhe é negada mediante uma humilhação por parte da formiga. O que, numa análise descontextualizada (para o contexto africano/moçambicano) remete à interpretação de que a formiga é digna de apoteóticos aplausos e à cigarra resta apenas a penalização por ter gasto tempo com futilidades.
No entanto, aplicando os modelos: ascendente e descendente, que são tipicamente usados na análise de narrativas orais, esta narrativa enquadrar-se-ia no modelo em espelho que é quando existe, na mesma narrativa, a possibilidade de conceder, conforme os actos praticados por cada personagem (num mínimo de duas personagens) que tiveram as mesmas oportunidades, um prémio ou um castigo. Portanto, esta leitura (a do castigo da cigarra que canta/faz arte) só é aceitável se tivermos em conta que esta narrativa fora produzida num determinado tempo (século XVII) e espaço (Europa) ideologicamente dominado por ideias racionalistas e até certo ponto segregacionistas cuja visão fora sentenciada, mais tarde e com uma nova tónica, por Leopold Sédar Senghor (1906-2001) ao afirmar que “a emoção é africana e a razão Helénica”.
Antes de mais, urge afirmar que “A cigarra e a formiga” é uma das fábulas atribuídas a Esopo e recontada por Jean de La Fontaine (um poeta e fabulista francês considerado o pai da fábula moderna) e traduzida para o português pelo poeta e tradutor Manuel Maria Barbosa du Bocage.
Não querendo, porém, concordar com a ideia racionalista a que fizemos referência acima, analisando a fábula nesta vertente percebe-se que a leitura ascendente dos actos da formiga, ou seja, a atribuição do prémio à formiga como protótipo de trabalhadora e sensata, cujos actos são fruto dum exercício racional e, em contrapartida, a leitura descendente dos actos da cigarra como protótipo de preguiçosa, insensata cujas “futilidades” são produto da emoção, remete-nos ao estabelecimento de simbologias mais objectivas e tratando-se de uma fábula que é um género cuja característica distintiva é a forte presença do animal ou de objectos inanimados personificados, representando as qualidades e os sentimentos dos homens com um propósito moralizante, diríamos que a formiga representa o branco (helénico) no tempo e espaço em que esta narrativa fora produzida que dava maior primazia à razão (ao exercício intelectual) visão que fora, também, sentenciada pelo racionalismo de René Decartes (1596-1650) que, numa sentença silogística, sublinha a superioridade da razão em detrimento da emoção (penso, logo existo/cogito ergo sum) e, neste contexto, a cigarra representa o negro (africano) cuja “vocação” fora relegada à emoção (tida como futilidade).
Embora haja que considerar o inegável facto de que “não se postula, pura e simplesmente, uma relação de estreita fidelidade, especular, entre um texto literário e um determinado contexto empírico,” satisfaz, também, a ideia defendida por NOA (1998: 29) apud CEZERILO (2010: 65) em reflexão sobre os preceitos da Literatura Colonial, segundo a qual, “por estar ligada a um contexto histórico determinado, a Literatura colonial interage com a História que a enquadra, fazendo-a ressoar, com maior ou menor impacto, em cada um dos seus textos.”
Nesta linha de ideias, tudo leva à conclusão de que “o texto literário constrói um mundo fictício, através do qual modeliza o mundo extraliterário transformando-o, portanto, numa referencialidade mediatizada.”(CEZERILO: 2010, p. 65)
De facto, aplicando o modelo/critério temático-antropológico notamos que esta fábula enquadra-se no tipo de narrativa que se serve de pessoas e/ou animais através do comportamento dos quais se pretende abordar questões ligadas aos costumes da comunidade, hábitos morais ou culturais, premiando os cumpridores e castigando os transgressores. É nesta senda que se nota de forma clarividente que o texto em análise não responde a um dos elementos importantíssimos da textualidade que é a situacionalidade. Visto que, premiando a formiga e castigando a cigarra contrapõe-se, de alguma forma, aquilo que é a realidade sócio-cultural duma sociedade em que o trabalho representado pela formiga e o canto (exercício estético) representado pela cigarra, são actividades híbridas e, até certo ponto homogéneas, se formos observar de forma atenta o que acontece nas actividades diárias da sociedade de que os alunos beneficiários do texto em causa fazem parte.
É respondendo a esta realidade híbrida entre o trabalho e o exercício estético que MACHADO (1995: 5) recria a sentença segregacionista de Decartes (penso, logo existo), donde resulta: “penso, danço, canto, logo existo". 

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