sábado, 3 de janeiro de 2015

EM JEITO DE COMENTÁRIO DO ARTIGO: “SERÁ A ESCRITA A ÚNICA VIA DE LIBERTAÇÃO DO HOMEM E A IMAGEM AUDIOVISUAL SUA MORTE?”

Reagindo a certas afirmações durante o lançamento de um livro em Xai-Xai, um amigo achou urgente escrever e enviar-me um artigo intitulado:
“será a escrita a única via de libertação do homem e a imagem audiovisual sua morte?”…
É verdade que houve um apelo expresso ao “escovismo”, mas, inicio a minha intervenção aplaudindo a pertinência e actualidade do debate que se levanta. Não pretendo fazer mais que um singelo comentário em torno deste assunto que, sinceramente, exige mais do que posso oferecer intelectualmente. Mas, enfim: cada um dá o que tem para oferecer!
Noto que o autor do artigo assume uma postura imparcial devido ao caracter questionador que adopta, o que é de louvar. Contudo, a partir da tonalidade das questões e das frases que delas (as questões) se avizinham pela anterioridade ou pela posterioridade, foi-me possível rastrear o âmbito das perguntas e a posição de quem as coloca, o que é também de louvar…afinal, houve apelo ao “escovismo” mas não ao “auto-escovismo”…por isso, fico-lhe muito grato… (risos)
Ora, se existe uma postura assumida no artigo, a mesma pode ser destrinçada em duas partes que passo a citar:
*      Há necessidade de a escrita, e sobretudo a poesia, reinventar-se através da imagem;
*  A imagem enquanto realidade semiótica não pode ser recriminada pelo grau de obscenidade porque a escrita também opera o mesmo tipo de “cócegas” na imaginação;
Verdade ou mentira, a poesia tem uma certa apetência/predisposição em casar com a imagem, não necessariamente como uma tímida assunção do seu fim em razão do eclodir da imagem nos últimos séculos, e sim como algo intrínseco a ela numa relação de “cara e coroa”. Introduzi este parágrafo com o clássico “verdade ou mentira” por as duas possibilidades serem aceitáveis: a verdade do que foi dito encontra-se na poesia do português Cesário Verde “o poeta que pintava quadros com letras” o exemplo disso é o poema “Num bairro moderno”. Por outro lado, a mentira da proposição supracitada poderia ser encontrada na poesia surrealista por parecer vedada naquele tipo de poesia a construção duma imagem (objectivamente reconhecível) ainda que seja a retalho.
Portanto, assumir-se um casamento entre a escrita, a poesia particularmente, e a imagem no estilo “duas metades da laranja encontram-se e unem-se harmoniosamente” tal como sugere o autor do artigo é uma possibilidade que exige uma boa e atenciosa perícia por parte do emissor e, também, do receptor (tomando como base o esquema de comunicação de Jackobson), tendo em conta que são realidades semióticas autónomas e autossuficientes que devem ser conscientizadas da relação de interdependência que se estabelece entre elas a partir do momento em que se unem, facto que, cá entre nós, não é de fácil trato mesmo entre humanos, daí os frequentes divórcios…enfim, são outras conversas.
Ora, em relação à recriminação do grau de “obscenidade” da imagem em detrimento do da escrita (conforme o autor do artigo parece contestar), quero crer que o dilema tenha cariz estético que moral, embora seja no último que todos os argumentos tendem para “ilegitimar” a exibição pública de certas imagens.
Uma grande luz para esta reflexão nos é trazida por Milan Kundera em “A Insustentável Leveza do Ser” ao discutir a noção estético-moral de conceito “merda” (no mais literal sentido do termo) em que afirma que “a merda é um problema teológico mais penoso que o mal.” (AILS: 233)
Segundo o autor, no mundo católico (e isto estende-se à todo pensamento cristão, senão religioso em geral) seria uma heresia assumir a ideia de um Deus com um intestino grosso e toda a cadeia de órgãos e funcionalidades a ele proporcionais. Embora seja dito que Ele fez o homem à sua imagem e, forçando essa ideia para o sentido fisionómico (o que prefiro acreditar que não que não seja o caso), estaríamos expostos a uma série de heresias, tal como ilustra Kundera ao retratar um episódio da sua infância nos seguintes termos: “quando era garoto e folheava o Antigo Testamento para crianças, ilustrado com gravuras de Gustave Doré, via nele o Bom Deus em cima de uma nuvem. Era um velho senhor, tinha olhos, um nariz, uma longa barba, e eu dizia a mim mesmo que, como tinha boca, devia comer. Se comia, devia ter intestinos. Mas essa ideia logo me assustava, porque, apesar de pertencer a uma família pouco católica, sentia o que havia de sacrílego nessa idéia dos intestinos do Bom Deus.” (AILS: 233)
Nota-se aqui que a intenção comunicativa da imagem (a gravura de Gustave Doré) não é a que o menino Kundera extraiu, o que quer dizer que tal como na escrita, a liberdade criadora se faz sentir na imagem. E, já agora, respondendo à pergunta que dá título ao artigo diria: a escrita não é a única via de libertação do homem, a imagem também o é.
Concluindo, perante este dilema que insisto em afirmar que seja de carácter estético, Kundera coloca-nos duas possibilidades: “ou a merda é aceitável (e, nesse caso, não precisamos nos trancar no banheiro), ou Deus nos criou de maneira inadmissível.” (AILS: 235)
Este recorte que faço da percepção de “merda” na óptica de Kundera parece deslocado e desproporcional ao problema que se nos coloca, todavia, aceitemos que neste caso discute-se toda e qualquer propriedade fisionómica que por motivações estéticas mantemo-la escondida do mundo (mesmo sabendo que dela(s) todo o ser humano dispõe) e, caso alguém tome a decisão de expô-la ao mundo seja por via da imagem (como é frequente) ou por via da escrita, surge o choque.
Do ponto de vista literário e isto estende-se a toda manifestação comunicativa, este ou aquele caminho (dos que foram acima colocados por Kundera) poderá ser seguido em consonância com o ideal estético de cada sociedade. Ora, está mais do que claro que a primeira possibilidade precisaria de uma revolução estrondosa em todo mundo (execepto em sociedades primitivas) por estar muito generalizada a ideia de que existem coisas que devem ser feitas e mostradas em público e outras que pura e simplesmente não entram nesse desiderato de publicidade e exposição.
A segunda possibilidade abre espaço para posturas mais social e antropologicamente aceitáveis consoante as sociedades, mas tudo no domínio do ideal estético dessa mesma sociedade. Se fomos criados de maneira inadmissível, ou escondemos essa condição ou, por outra via, assumimos a nossa condição de inadmissibilidade mediante o bom senso e bom gosto que caracteriza qualquer ideal estético que uma sociedade assume.
E, esta assunção de um ideal estético por parte de uma determinada sociedade é intrinsecamente influenciada pela realidade política vivida nessa tal sociedade. Fazendo minhas as palavras do autor que me acompanha neste comentário, Milan Kundera, diria que “numa sociedade em que coexistem várias correntes políticas e em que suas influências se anulam ou se limitam mutuamente, é possível escapar da inquisição do kitsch/ideal estético; o indivíduo pode proteger sua originalidade e o artista pode criar obras inesperadas (AILS: 239). E isto explica a nossa “indignação” (em meio a família e a menores, por ex.) perante a exposição da mais íntima intimidade por parte do cinema brasileiro e norte-americano porque “nos lugares em que um só partido detém todo o poder, somos envolvidos sem escapatória pelo reino do kitsch/ideal estético totalitário” (no sentido em que tudo que está fora do ideal estético é banido da vida).

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