quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Formação de um Português Moçambicano ou Acomodação de construções Erróneas?!

No quotidiano da comunicação moçambicana, nos médias, nas universidades, sempre se nos aconchegam ao nosso ouvido informações relativas à existência de um português moçambicano (PM), caracterizado por apresentar desvios da norma padrão (PE), e ainda pelos neologismos, (integração de novas palavras que não existem na língua padrão, caso de machimbombo, machamba, chapa, etc., ou ainda a integração de algumas palavras provindas das Línguas Bantu, caso de Timbila, phahlar, etc).
Não nos é nova também a questão dos debates acesos sobre a criação de um Padrão Moçambicano, a oficialização do PM, pois é esta variante que, de forma mais simples e conseguida, espelha a nossa cultura, naquilo que chamaríamos o Português marrabentado pois uma língua existente num certo espaço e sempre usada por certos homens é condicionada pela estruturalidade do meio onde se insere e, mais do que isso, entre os valores desta estruturalidade e o meio que é a realidade, serve de mediadora, é por via disto, como refere como refere FIRMINO (1987:12), que, as línguas apresentam estruturas que representam o modo como as sociedades concebem e categorizam o mundo em cuja função das estruturas se realiza na linguagem.
Na nossa cultura e visão do mundo como moçambicanos, tudo o que passa a noite, dorme, ou seja, pernoitar e dormir, para nós não há diferença, daí que se aceitem construções do tipo:
·        Matewu a yetlelile ndleleni. [ Mateus dormiu no caminho] PM & PE.
·        Vonani txurhi linga yetlela handle. [Vejam o pilão que dormiu fora] PM vs PE [ ...almofariz que pernoitou...].
Portanto, a partir destes exemplos, podemos inferir que o PM, está mais ligado à nossa forma de pensar e conceber o mundo, o que é secundado ferrenhamente por Sapir-Worf, ao defenderem      a língua como condicionate da visão do mundo. 
Cada língua apresenta suas peculiaridades, os enunciados de um falante bilingue terão a tendência de manifestar transferências linguísticas motivadas pela transposição dos elementos de uma das línguas do conhecimento do referido falante, isto mostra-nos claramente que, as línguas bantu não são tão culpadas, como muitos tendem a crucificá-las, pela actuação errónea dos falantes moçambicanos, mas um fenómeno natural a qualquer falante bilingue, sem a mera necessidade de culpabilizarmos a nenhuma língua, pois, na esteira de Firmino (ibd: 13), o uso de L2 não é mero decalque da L1, é necessária uma categorização das estruturas linguísticas para que o falante bilingue possa distrinçar as semelhanças e dissemelhanças entre as línguas. Trata-se de um processo deficilmente realizável com perfeição, pois existem domínios em que tal é praticamente impossível, o caso da pronúncia. Para estes casos, a realidade moçambicana é um exemplo conseguido, pois se podem notar estas perturbações não previstas no padrão em uso.

Os falantes do Emákhuwa tendem a ensurdecer as oclusivas bilabial e linguodental /b/ e /d/, como referem Mateus, Freitas & Falé (2005: 83), realizando-as como /p/ e /t/, isto porque na referida língua, estas oclusivas não existem, se bem que ocorram em sons próximos a /p/ e /t/, oclusivas surdas.
Ex: Fui tepositar o tinheiro no panco PPT. PM vs Fui depositar o dinheiro no banco BPD. PE
Na zona sul do país há tendência de ensurdecer a oclusiva velar /g/ quando precedida de uma sílaba em que ocorra a oclusiva linguodental /d/.
Ex: Códico. [g] e Nádeca. [g].
Ainda nesta região do país, os falantes não diferenciam a pronúncia da vogal /e/ quando ocorre como tónica realizando-se como média anterior [e] em palavras com acentuação gráfica com recurso a circunflexo.
Ex: Independência [ε], Consequência [ε], sequência [ε], Consciência [ε],  Crescência[ε] no PM e [e] segundo a norma padrão, PM.
Nas aulas de português, os professores, de forma natural e com segurança, pronunciam:
Lê [ε] o texto da pág. 14. PM vs [e]. PE.
Você [ε], saia já!.
Curiosamente, os mesmos professores, ao se referirem ao nome Português, não cometem mesmos erros, neste caso pronunciam correctamente a média anterior [e].
Para quem seja atento, diariamente ouvimos os artistas da afinação nos semi-colectivos de passageiros a cidade de Xai-Xai entoando a melodiosa canção: Chongoene Siyaya Poiombo Chibôótu....!Chibôóto...!, ou por outra Mapôótu....! Mapôótu...!
O que observa é a tendência de substituição da vogal /u/ por /o/ pois, este permite a maior elevação da voz, comparativamente ao /u/, o que lhe pode facilitar o alcance de passageiros que estaja, distantes, para além de este discurso e pronúncia rimarem com o perfil desta actividade.

Em Moçambique, a distinção entre tu e você é frequentemente neutralizada, e têm sido usadas duas formas alternadamente, ou você toma o lugar de tu. Uma consequência da neutralização da diferença entre você e tu é a frequente confusão nos correspondentes padrões de concordância gramatical, geralmente com o você a tomar as formas de concordância que correspondem a tu.
a)      Você! Quem és você para gritar assim como se fosse um gorila! (um professor primário na EPC de Maguiguane, Manjacaze).
Esta frase é exemplificativa das discordâncias que caracterizam as construções com recurso a formas de tratamento tu e você.
Uma novidade é que, no tratamento formal, recorre-se ao tratamento nominal como se pode notar na seguinte frase:
a)      Papá, o papá gosta de maçaroca?
Em instituições, usam-se mais nomes como chefe, chefia, patrão, etc.
Outro aspecto digno de registo é relativo aos nomes atribuídos ao órgão tutelar das autarquias, que se tem designado de Conselhos Municipais [s], ora, segundo o Dicionário de LP:
Con[c]elho – n. m. Divisão Administrativa, subdivisão do distrito ~ Munícipio; Dicionário Verbo Língua Portuguesa 2006.
Con[s]elho – n. m. Acto ou efeito de aconselhar, de dar opinião, parecer, sugestão.
Grupo de pessoas que funcionam como instituição ou órgão colectivo, de decisão ou de consulta em matéria política, administrativa (pública ou privada). Podemos encontrar Conselho Científico, Administrativo, do Estado, de Ministros, de Segurança etc.. Dicionário Verbo Língua Portuguesa 2006.

Ocorrem construções passivas estranhas no PM, como podemos verificar nos exemplos seguintes:
Eu fui dado um rebuçado. PM vs Foi-me dado um rebuçado. PE
Supõe-se que um sujeito que na activa correspondente desempenha a função de Objecto Indirecto e não de Objecto directo, [deram-me um rebuçado].
Constatam-se ainda construções em que o conector [enquanto] é usado erroneamente como concessivo.
a)      O João foi perguntado a que partido pertencia. PM vs Foi-lhe perguntado a que partido pertencia/ foi perguntado sobre a que partido pertenciam.
Peres & Móia (1995: 228)  referem que quando o argumento que representa o conteúdo ou tema da pergunta é introduzido pela preposição sobre, são possíveis as passivas em que o argumento correpondente ao destinatárioé realizado como sujeito.
b)       A mamã me bateu enquanto não tenho culpa. PM vs A mamã bateu-se embora/ ainda que não tivesse culpa.
Para além do uso impróprio da conjunção temporal/ contrastiva, encontram-se ainda patentes anomalias que se prendem com a colocação indevida do pronome clítico[4] [me], que devia ocorrer na posição pós-verbal, ocorre na posição enclítica, o clítico, na frase declarativa positiva, BERGSTRON & REIS (1999:82).
Em algumas construções, o sentido é captado a nível pragmático, sendo que, o falante infere que não deva interpretar os dizeres de forma literal.
Ex: Eu tenho cabeça. PM. Querendo dizer: estou com dores de cabeça. PE
Ex: Eu como muito. Muito-muito quando é carne.
Sabe-se que: na língua portuguesa não é possivel a reduplicação do advérbio muito, mas nas LB isto é um dado adquirido, Firminio (ibdem).
Em palavras cuja última vogal é /z/ realizando-se em [ʃ], quando ocorrem no plural, não de verifica o acréscimo do sufixo “es”, tomamos como exemplo:
“(...) há jornalistas capaz (es) de dizer que Lucky Dube morreu de malária...”, Ziqo in Fala a verdade.
“Estamos muito feliz por este casamento”, um casal na conservatória dos registos e notariado de Manjacaze.
Para além destas irregularidades, tem-se verificado em alguns falantes, a criação de uma variação/ flexão em número e género do advérbio “muito”em que deparamos com construções do tipo:
Ex:1, uma rapariga, ao tentar alogiar-se diz: eu sei de que sou muita bonita. Mas também pode-se dar o caso de: estamos muitos zangado.
Ora, na primeira frase, para além da variação desviante do advérbio muito, ocorre um fenómeno de dequeísmo que, na prescrição de Mateus et all (2003: ) é o fenómeno de ocorrência frequente da preposição [de] antecedendo a completiva finita, quando as propriedades do núcleo lexical que a selecciona, não a justificam.
Podemos ainda deparar com os problemas de transitivização dos verbos prepositivos de deslocação:
a) * O Sr. professor entregou [SN o chefe da turma] as convocatórias dos nossos colegas. [= (SP ao chefe da turma)]
b) * As nossas amigas trouxeram [SN a minha colega] presentes. [=(SP à minha colega)].
Como se vê, ocorrem construções de duplo objecto, que não são mais do que efeitos sintácticos dessa modificação lexical, de estrutura argumental dos verbos, Faria et all (1996: 314), sendo que, ocorre a transitivização do verbo passando a seleccionar dois SN’s [ V SN SN], em vez de um SN OD e um SP.
Causas das transformações
Estas transformações não se explicam somente através da influência das línguas africanas, Firmino (ibd: 21), mas existem outras causas como passamos a mencionar:
a)      Quando um falante vive num meio onde um determinado desvio ocorre com muita frequência, corre o risco de produzir frases desviantes;
b)      Os desvios que, aparentemente não se podem imputar à influência das linguas em coexistência com o português resultam do deficiente domínio do funcionamento das estruturas do português;
c)      Alguns destes desvios podem surgir da própria complexidade do sistema linguístico, pois, em qualquer língua, existem sempre estruturas cuja realização apresenta dificuldades.

Que fazer destas alterações/ transformações!?
O Português falado em Moçambique está a sofrer sérias tranformações em diferentes campos, porém, devemos tomar um pouco de precaução, sob o risco de nativizarmos uma língua cada vez mais distante de uma homogeneidade (sabe-se que não existe homogeneidade pura) pois, já o mesmo emergente PM regista diferentes variações, a nível interno, devido à diversidade das línguas com as quais coexiste, que mesmo sendo do mesmo grupo, e apresentando caracteristicas comuns, as influências que trazem ao PE são diversos e imensuráveis.
Compreender essa transformação do Português significa admitir que o Português falado em Moçambique se venha a transformar na sua estrutura, no seu léxico, na sua pronúncia, no seu ritmo, na sua musicalidade, à medida que se afeiçoar ao que será a expressão da nossa ‘moçambicanidade, Gonçalves (2005: 7).
Esta problemática (a de criação do PM) é que suporta as tentativas de criação de uma “independência” linguística através da nativização do PM, como aconteceu no Brasil, pois, trata-se de um país que constitui um exemplo de superação. Entretanto, o Brasil teve esta iniciativa logo após a independência, pois, o movimento independentista brasileiro fez com que muitos intelectuais defendessem que a autonomia política brasileira tinha que ser acompanhada por uma brasileirização do português, porque só assim se caminharia para a criação de uma nação original. 
Façamos uma comparação com o contexto moçambicano, veremos que só a  partir dos anos 1989 é que aparecem as makhosazanas da Cátedra de língua (Gonçalves, Mendes, Siopa, etc,) juntamente com os seus afilhados (Chimbutane, Firmino, Machungo, etc) a trazerem reflexões sobre a criação deste PM, mas forçados pela situação de total abandono à regra. Mas nunca é tarde, e na perspectiva de Bila (2012: 9):
A nossa missão é desmascarar todas as armadilhas intelectuais, discursivas e humanitárias dos Neo-colonialistas. Exige-se, hoje, dos jovens, mais conhecimento e domínio científico-tecnológico; mais conhecimento sobre a História; mais conhecimento sobre a economia e, sobretudo, mais conhecimento de si mesmo, das suas raízes, das suas capacidades, das suas potencialidades, do valor da cultura de seu povo e do trabalho para vencermos esta batalha que não é fácil.

Perante este fenómeno, devemos sim nativizar o Português, aceitando as transformações, mas prestemos atenção para o facto de algumas alterações serem controláveis, e com accionamento de mecanismos próprios serem ultrapassadas, pois, nem tudo o que se traz ao português constitui riqueza, de certa forma retira a pureza linguística, e a componente regente da comunicação.

Dimensões do Processo de Nativização do Português
O processo de nativização do português compreende duas dimensões: uma sócio-simbólica, com a emergência de novas atitudes e ideologias sociais face ao uso da língua; outra linguística, com o desenvolvimento de novas formas de uso da língua, Firmino (2000: 11).
Sócio-simbólica
À medida que a ideologia oficial promove o português como língua oficial e língua de unidade nacional, a consciência da importância dos valores sócio-simbólicos ligados a esta língua é mais consolidada. Por esta razão, o português poderá ser actualmente um dos símbolos que é amplamente reconhecido pelos moçambicanos para marcar a unidade nacional e através do qual a ideia de nação é imaginada e vivida, especificamente entre os moçambicanos em geral, não se restringindo às elites, ou zonas urbanizadas.

Mudança linguística
Do mesmo modo que o português no Moçambique independente está a adquirir novas funções sociais, está também a desenvolver características estruturais e retóricas típicas. O desenvolvimento dessas características é, contudo, uma continuação de um processo que começou antes da independência. o uso do português alargou-se e os sinais da sua moçambicanização expandiram-se. Porém, os mecanismos que haviam contribuído para a aprendizagem e reforço do padrão linguístico se alteraram, dando origem à proliferação de novas formas linguísticas.
Aceitar esta variante, não implica necessariamente ficar-se passivo a todas as irregularidades cometidas na língua, em nome da representação da nossa cultura, ou seja, que não sirva de trincheira ou refúgio para os erros crassos e gritantes que se verificam, correlação a palavras que, mesmo no contexto moçambicano são distintas, porque estaríamos a desmoronar um império ainda em construção/ inacabado. É nesta perspectiva que apresentamos algumas dicotomias que possam dividir pensamentos:

Questões retóricas:
ü  Será criação de um Português Moçambicano, ou fuga com seringa no rabo!? Porque, qualquer construção errônea detectada nos falantes moçambicanos, é um suporte da suposta construção dum PM, será que a variação linguística ocorre a partir de selecção e aprovação de irregularidades ou desvios à norma padrão.
ü  Como o professor poderá lidar com este dilema, se os programas e livros didácticos vêm em PE, e traduzem regras do padrão, mas tendo de aceitar desvios?
ü  Qual seria o papel da Universidade e dos académicos, enquanto forem os primeiros a se conformar perante esta realidade, se estivermos recordados do papel das academias: ..., a Universidade tem um papel primordial no processo de desenvolvimento humano, porque ela prepara, primordialmente, a geração de hoje para cuidar de uma geração ainda não nascida, Lima (s/d). Se a Universidade não consegue solucionar este problema quem o fará? A não que seja esta uma solução bem conseguida, [está correcto no contexto moçambicano].

Que seria útil para a construção de um Português Moçambicano?
Depois de tantos exemplos e informações relativas a mudanças e até variações linguísticas da Língua Portuguesa em Moçambique, achamos que, os neologismos provindos das LB’s através dos empréstimos lexicais que vêm enriquecer a lexicologia do Português, na medida em que vão designar realidades ainda inexistentes na Língua Padrão, é que são exemplo inequívoco e conseguido da construção do PM, e como refere Schimdt-Riese (s/d), ocorreria a nativização através da reoperacionalização, que trata de modificações do sistema devidas às novas necessidades comunicativas, emergentes na comunidade, tratando-se de um processo monitorado tanto pelo falante tanto pelos gramáticos/ linguístas ou professores de língua.
ü  A reoperacionalização induz e provoca toda uma série de variações e mudanças que podemos considerar relativas do ponto de vista sintáctico, mas que tocam profundamente as estruturas da língua do ponto de vista pragmático e semântico.
ü  Ademais, um argumento importante que defende a nativização do português tem mais a ver com a incorporação de traços tais como elementos lexicais e modelos comunicativos que invocam a nova economia política em que são usados do que com a subversão dos padrões gramaticais europeus.
ü  Agora, relativamente a questões de variação fonético-fonológica, tem de se assegurar que não tenha implicações na grafia, devendo o professor de língua assegurar que os seus aprendentes prestem atenção à pronúncia, que pode não ser correcta, conforme as particularidades de cada língua autóctene, mas a nível ortográfico devem escrevê-las correctamente.

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